Quando se trata de presunção de inocência não é incomum que conclusões falhas sejam reproduzidas a ponto de, pela repetição, tornarem-se parte de todo um imaginário social, por vezes às custas de vidas e da liberdade humana.
E é precisamente a partir de uma falha lógica, para dizer o mínimo, que tem se difundido o discurso majoritário sobre a execução provisória da pena privativa de liberdade após a condenação em segunda instância, ou, para simplificar, a chamada prisão após condenação em segunda instância.
A premissa endossada por muitos é a seguinte: quem se manifesta contrariamente à essa forma de prisão não pode ser senão alguém que, de uma forma ou de outra, é conivente com a corrupção e, segundo alguns novos paladinos da justiça: com crimes tais como o homicídio e o estupro.
FALTA DE CONSISTÊNCIA LÓGICA
A afirmação é recheada de retórica e entusiasmo, na mesma proporção em que lhe falta, literalmente, consistência lógica. É que ela encara uma relação de possibilidade como uma relação de necessidade. Explico-me.
É claro que haverá quem defenda a inconstitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância por razões particularistas, de mera conveniência para si ou para seus amigos ou clientes.
Penso que poucas pessoas seriam ingênuas a ponto de duvidar disso. Por outro lado, daí não se pode extrair a conclusão de que, necessariamente, todas as defesas desse entendimento teriam por fundamento tais interesses obscuros.
Esse tipo de erro lógico, como mencionei, é comum, de modo que mesmo os entusiastas dessa espécie de prisão poderiam ser suas vítimas, o que aconteceria, por exemplo, se fosse cogitado que alguns desses interlocutores a defenderiam, antes de tudo, para promover interesses corporativistas ou egocêntricos.
É claro que, também aí, haveria uma relação de mera possibilidade.
Feita essa introdução, cuja necessidade, por si só, já demonstra a força desse discurso majoritário e logicamente errado sobre o tema, passo a alguns pontos que considero fundamentais para a resolução dessa aparente controvérsia jurisprudencial e doutrinária:
Abuso dos conceitos abertos
Um dos principais problemas jurídicos brasileiros, em se tratando de racionalidade de decisões judiciais, diz respeito ao uso e ao abuso dos chamados conceitos abertos.
É o caso de proporcionalidade, razoável duração do processo, dignidade humana, ordem pública, interesse público, efetividade do processo.
Na inobservância de um mínimo de critérios teóricos e em um ambiente de pouca deferência às decisões democráticas e ao uso corrente de qualquer termo, tais conceitos abertos tornam-se um álibi retórico, à disposição do intérprete para utilizá-los à sua maneira.
Não é raro, aliás, que se procure interpretar/definir esses conceitos abertos como princípios, especialmente para facilitar a sua relativização;
Sincretismo desenfreado
Outro problema jurídico particularmente brasileiro está na transposição desenfreada, acrítica e muitas vezes errada de teorias ou modelos estrangeiros diversos e, não raro, conflitantes entre si ou, no mínimo, desenvolvidos para um contexto normativo e social próprios.
Esse sincretismo metodológico acontece no Direito Constitucional (cf. Virgílio Afonso da Silva Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico), no Direito Administrativo e, agora, tem acontecido no Direito Processual Penal (Cf. Máximo Langer From Legal Transplants to Legal Translations), e talvez seja o resultado da ausência de uma identidade jurídica brasileira consolidada.
PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA ILUSTRA OS PROBLEMAS
O caso da prisão após condenação em segunda instância é um bom exemplo de ambos os problemas.
Os dois manifestos apresentados ontem ao Supremo Tribunal Federal, tanto o da lavra dos defensores da prisão, como o elaborado pelos seus críticos, vinculam toda a sua argumentação ao chamado princípio da presunção de inocência.
No manifesto favorável à prisão, aliás, mencionou-se especialmente o caráter não absoluto de qualquer princípio, razão pela qual também a presunção de inocência deveria ser relativizada, para assegurar a efetividade das investigações e da luta contra a corrupção e o crime organizado.
No segundo argumento, afirma-se que países de tradição jurídica relevante reconheciam restrições ao referido princípio, tais como Estados Unidos, Portugal e França.
UMA SUCESSÃO DE ERROS
A sucessão de argumentos é uma sucessão de erros, que desconsidera por absoluto o caráter normativo que a Constituição da República, o que efetivamente interessa neste caso, atribuiu à chamada presunção de inocência. Isso foi ignorado em todas as manifestações jurídicas a respeito do caso às quais tive acesso.
Como menciono em Decisão e Racionalidade: Crítica a Ronald Dworkin (SAFe, 2017, p. 156), a CR estabeleceu a presunção de inocência não como princípio, mas como regra constitucional, dotada de um comando textualmente claro, com razões definitivas, que fixam o termo de duração pelo qual ninguém será considerado culpado.
Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, CF) não é um princípio, mas uma regra, que somente poderia ser desconsiderada caso se declarasse a sua invalidade, com o que ela seria extinta da ordem jurídica, ou no caso de se lhe estabelecer uma cláusula de exceção.
Daí é que o famoso e tão mal utilizado argumento nenhum princípio é absoluto simplesmente não tem qualquer cabimento neste caso. A menção à presunção de inocência como um princípio, portanto, é muito mais fruto da retórica do que de embasamento teórico.
Mas, que fique claro: o fato de se tratar de regra constitucional não diminui, em qualquer hipótese, a presunção de inocência, antes a tornando taxativa e menos dada aos malabarismos interpretativos que tanto tem marcado as decisões judiciais brasileiras.
Ao mesmo tempo, a consulta à história constitucional de países juridicamente relevantes, embora recomendável para fins de diálogos constitucionais, não pode servir como ferramenta de aniquilação de uma das maiores garantias que todo cidadão possui: o respeito, pelos nossos tribunais, ao texto constitucional. Somente assim, é possível construir uma autêntica cultura de legalidade constitucional.
QUAL É A CONCLUSÃO?
A conclusão é que ambos os Manifestos estão envolvidos em um falso dilema, ambos apostando na premissa de que a solução do caso gravitaria em torno da delimitação exata do assim chamado princípio da presunção de inocência.
A presunção é relativa ou absoluta?
Pode-se presumir a inocência de alguém quando discussões de prova já não são mais permitidas?
Como se soluciona a suposta colisão entre presunção de inocência e efetividade da persecução penal?
Não é disso que se trata. Não há que se falar em ponderação entre presunção de inocência e qualquer outro interesse social.
Há que se falar, sim, em respeito à regra constitucional, expressa como direito fundamental e alçada ao caráter de cláusula pétrea, impassível de alteração mesmo que por meio de emenda constitucional (art. 60, §4º, IV, CF).
O curioso é que a mais anunciada pauta dos defensores da prisão após a condenação em segunda instância seja a formação de uma cultura de legalidade, onde, como diz o bordão, ninguém estaria acima da lei.
Convém-lhes, por dever de coerência, respeitar a legalidade constitucional mesmo e especialmente quando esta contraria os seus interesses mais caros.
Escrito e Publicado por:
André Portugal Advogado. Sócio do Klein Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Professor de Teoria da Decisão do FAE Centro Universitário;