Em 31 de agosto de 2016 chegou-se ao desfecho do julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, no Senado Federal. Um dos capítulos mais importantes e perigosos da nossa jovem democracia.
Na época, tive a oportunidade de escrever, para o jornal Gazeta do Povo, texto em que me propus a responder se o impeachment da ex-presidente teria sido, de fato, um golpe, como muitos, em sua maioria bem-intencionados e verdadeiramente preocupados com a democracia brasileira, protestaram [1].
Na oportunidade, iniciei minha análise enunciando um pressuposto: qualquer resposta a tal questão exigiria, necessariamente, esclarecimentos a respeito do que se pretende dizer quando se fala em golpe, ou, em outras palavras, do uso que se dá ao termo golpe.
Somente assim, algum entendimento seria possível. Mencionei, então, que atribuía ao termo golpe o significado de ruptura, rompimento, quebra da ordem institucional.
O IMPEACHMENT É CONSTITUCIONAL?
O impeachment, evidentemente, encontra previsão constitucional (art. 86, CF). A Constituição estabelece, além disso, um rito peculiar.
Havendo indícios de crime de responsabilidade, o pedido deve ser encaminhado ao Presidente da Câmara dos Deputados, a quem caberá este juízo inicial, sobre a existência ou não desses indícios.
Sendo o juízo positivo, o pedido é recebido e encaminhado ao plenário da Câmara, quando se vota pelo recebimento ou não do pedido. Sendo ele negativo, o pedido é prontamente arquivado.
Uma vez aceito o pedido pelo plenário, como se viu no processo de impeachment da ex-presidente, ele é encaminhado para o Senado Federal, responsável pela análise de seu mérito (art. 52, I, CF).
Cabe ao Senado, em suma, o juízo condenatório ou absolutório do Chefe do Executivo quando investigadas práticas de crime de responsabilidade, mediante o acompanhamento do Presidente do Supremo Tribunal Federal.
O QUE O SISTEMA JURÍDICO DIZ SOBRE O IMPEACHMENT?
Dizia eu, na matéria da Gazeta:
Tem-se, em outras palavras, situação em que o próprio sistema jurídico não só admite a possibilidade do impedimento do chefe do Executivo, como atribui essa decisão ao Poder Legislativo, ou seja, a um juízo que não deixa de ter sua natureza política.
É que, embora a decisão efetivamente tenha de se pautar por um critério jurídico (a saber: a configuração ou não de crime de responsabilidade), não cabe senão ao Senado aferir a observância de tal critério, sem, no entanto, ser-lhe exigido o rigor argumentativo de uma decisão judicial.
Guardada essa importante diferença, a situação não deixa de ter alguma semelhança com várias outras vivenciadas por nosso sistema jurídico, nas quais se atribui a um órgão ou conjunto de pessoas determinada responsabilidade decisória, isto é, determinado poder de dizer o que se adequa e o que não se adequa ao sistema nosso sistema, como qualquer outro, aliás, é constituído e mantido, essencialmente, por relações de poder.
É o caso, por exemplo, do poder conferido a um grupo de juízes para decidirem, em última instância, sobre a ocorrência ou não de um dado crime e sobre a sua respectiva imputação a uma dada pessoa, ou, então, sobre a legitimidade constitucional das pesquisas com células-tronco.
Outro exemplo, muito mais assemelhado ao julgamento do impedimento, é o poder atribuído ao júri popular, para decidir casos de crimes dolosos contra a vida.
Em nenhum desses casos, não obstante a necessidade de fundamentação mais ou menos juridicamente rigorosa, há a garantia de uma decisão adequada ao sistema (aliás, o próprio conceito de adequação ao sistema pode ser fluido), mas, tão somente, a atribuição de um poder de decidir.
Em regra, no final das contas, a decisão será definitiva, independentemente de quaisquer críticas que porventura se façam necessárias: os juízes ou o júri podem, de fato, equivocar-se em um juízo condenatório ou absolutório, e os vários inocentes presos e culpados soltos servem para demonstrá-lo.
Da mesma forma, uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal a respeito de células-tronco não constitui, só por isso, a opção mais aceitável ou adequada.
E, no entanto, todos esses casos, incluídos os inevitáveis equívocos decisórios, integram a ordem do sistema.
MAS O IMPEACHMENT DA DILMA FOI LEGÍTIMO?
No caso do impeachment, o próprio sistema optou por possibilitar um julgamento também político e, por isso, despido do rigor metodológico que, somente em tese, baseia toda e qualquer decisão judicial. E, efetivamente, isso gera um problema quanto ao controle da racionalidade da decisão.
Mais ainda, o julgamento recente passou aos próximos presidentes uma mensagem muito clara, e nada confortante: tenham, a qualquer custo, o apoio da maioria do Congresso e, principalmente, do presidente da Câmara dos Deputados, caso contrário
Em síntese, conclui que, no sentido que eu havia atribuído ao termo golpe, este não teria se configurado, o que, obviamente, não nega a existência, à época, de uma conspiração política torpe, além de ter sido seguido da ressalva de que isso não significa, evidentemente, que a decisão tomada seja juridicamente acertada e não mereça ser alvo de críticas, tanto da academia, como dos cidadãos.
Ademais, existem discussões jurídicas interessantes a respeito da motivação ou, melhor, do desvio de motivação de boa parte dos parlamentares que votaram pelo recebimento do pedido, especialmente se isso não teria configurado uma razão relevante para a nulidade do processo.
O IMPEACHMENT FOI GOLPE OU NÃO?
De todo modo, hoje, transcorrido um certo tempo após a destituição de Dilma Rousseff, deparamo-nos com o instável governo do presidente Michel Temer, mediante o suposto pagamento de gordas emendas parlamentares e a redistribuição de cargos a seus aliados, lutando para se manter, precisamente num momento em que várias denúncias de corrupção, baseadas inclusive em gravações realizadas em ação controlada da PGR, começam a ganhar corpo.
Num tal cenário, naturalmente, vários foram os pedidos de impeachment protocolados em desfavor de Michel Temer, alegando que teriam sido praticados crimes de responsabilidade (até agosto de 2017, havia 26 pedidos, um deles protocolado pela própria OAB).
Nenhum deles, não obstante, foi sequer recebido pelo atual presidente da Câmara, Dep. Rodrigo Maia (DEM), notório aliado de Temer, a quem cabe, como mencionei, o juízo a respeito da existência ou não de indícios de crime de responsabilidade por parte do presidente.
Isso significa que, segundo o nosso sistema jurídico, cabe, hoje, somente a Rodrigo Maia dizer se existem ou não tais indícios, pouco importando quão notórios eles sejam.
No caso de Dilma, o presidente da Câmara à época era o então deputado Eduardo Cunha (PMDB), quem manifestamente lhe fazia oposição e dava todos os sinais de que faria o que estivesse a seu alcance para levar o processo de impeachment adiante. E, de fato, o fez.
Em caso manifestamente mais controverso e com argumentos mais frágeis do que os que constituem os pedidos recebidos por Rodrigo Maia, o pedido de impeachment de Dilma Rousseff foi recebido e, sem o apoio necessário também do restante do Congresso, transcorreu do modo como todos sabemos.
Uma das mensagens que o impeachment de Dilma deixou muito clara, mencionei, era a de que todo Chefe do Executivo deveria, sobretudo a partir dali, lutar para ter o apoio do Presidente da Câmara dos Deputados.
O governo Temer articulou-se politicamente para obtê-lo. Soube, neste aspecto, jogar de acordo com o sistema. Por isso mesmo, a despeito de todos os indícios de irregularidades contra o atual presidente, da sua duvidosa legitimidade democrática e do cada vez mais reduzido apoio que lhe presta o Congresso Nacional, é bastante difícil que algum processo de impeachment em seu desfavor seja recebido.
E O IMPEACHMENT DE BOLSONARO?
Bolsonaro é o presidente recordista em pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados. São centenas de pedidos, boa parte deles indicando que crimes de responsabilidade foram mesmo cometidos pelo Presidente. Esses crimes dizem respeito à gestão da pandemia mas não só.
O Presidente, no entanto, em franca contradição com seu discurso de campanha, firmou pacto com o chamado Centrão, para o qual, na prática, delegou decisões importantes sobre orçamento público e, em última análise, a própria prerrogativa de governar o país. A aliança entre Bolsonaro e o Centrão é uma via de mão dupla: Bolsonaro se protege do impeachment, mas com o preço de entregar o seu governo.
De todo modo, a lógica aplicável ao caso Temer se aplica aqui: Arthur Lira (PP), por causa desse pacto, não recebeu nenhum pedido de impeachment do presidente. E, para o bem ou para o mal, não há nada a ser feito nesse sentido. A menos que as regras constitucionais que regulam o impeachment sejam alteradas.
Escrito e Publicado por:
André Portugal: Advogado e Sócio do Klein Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Professor de Teoria da Decisão do FAE Centro Universitário;
Notas:
[1] Texto disponível no seguinte link:
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/o-impeachment-de-dilma-rousseff-foi-um-golpe-8i7n2sl6tnj3vmxa8g2ng74b1