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UM DIREITO ADMINISTRATIVO DA CRISE?

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17 Janeiro 2022

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Que as crises demandam arranjos regulatórios apropriados para a emergência que lhes acompanha, parece ser ponto de razoável consenso entre os estudiosos do direito administrativo. 

Não por outra razão, muito se tem falado na necessidade de se estruturar o que seria um direito administrativo da crise ou da emergência, especificamente para regular as relações entre o Estado e os particulares durante a pandemia do novo coronavírus.

O ponto de partida desse novo direito administrativo, segundo administrativistas relevantes, deve ser o combate ao que se considera um formalismo exacerbado do sistema de regras atualmente previsto, tido como inadequado e contraproducente para enfrentar uma situação de pandemia. A pandemia exigiria um novo direito, afirmam.

Seu ponto de chegada, por outro lado, deve estar, para uns, na consolidação da primazia de determinados princípios constitucionais em detrimento das regras legais ou mesmo constitucionais e, para outros, na afirmação definitiva de que o direito deve se pautar em juízos consequencialistas, de modo que nenhum princípio “abstrato” ou mesmo regra jurídica seja aplicável quando tal aplicação trouxer “consequências práticas prejudiciais”. 

A segunda alternativa foi expressamente endossada pelo Ministro Luiz Fux, em artigo recentemente publicado na Folha de S. Paulo. Eis sua sentença final: “Juízes devem ser responsivos ao povo e mensurar as consequências das suas decisões. É dizer: não é hora de apregoarmos a máxima ‘dura lex sed lex’; ao revés, obedecer o sábio aforismo de Santo Agostinho: ‘necessitas non habet legem’. Vale dizer: ‘Diante da necessidade, deve cessar a letra fria da lei’” [1]. 

Em alguns casos, há mesmo um paradoxal sincretismo: a defesa dos princípios é feita ao mesmo tempo de uma aposta nesse consequencialismo, que é identificado como a condição de possibilidade de um sistema principiológico coerente e íntegro. 

E, para afirmar a integridade constitucional desse novo direito administrativo, tem sido lugar comum a aposta no que se convencionou chamar de “princípio da proporcionalidade”, cuja função seria definir os rumos do controle desse novo regramento.

DIREITO ADMINISTRATIVO E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

A inaplicabilidade de regras legais tem sido defendida com o argumento de que o assim chamado “princípio” da legalidade, por ostentar condição de princípio, fatalmente teria sua aplicação condicionada às circunstâncias fáticas então verificadas, podendo, portanto, ser balanceado com outros princípios constitucionais, como o direito à saúde, à vida etc., no que ele poderia ser restringido ou mesmo afastado.

Posição defendida em dois artigos de Marçal Justen Filho, por exemplo. Em suas palavras, “exigência de norma legal como fundamento para a restrição à liberdade privada ou para a atuação estatal se constitui em um princípio”. A sua aplicação envolve o sopesamento das circunstâncias e pode ser modulado para se permitir a prestação adequada dos serviços públicos, assegurar a sua continuidade e regulamentar a sua regularidade.  “A conclusão lógica apontaria para que, no contexto presente, o sopesamento dos diversos princípios aplicáveis impõe uma solução diversa daquela até então consagrada.”[2]

Em termos práticos, essa compreensão, da qual nasce o direito administrativo da crise, permitiria o afastamento de regras como a obrigatoriedade de licitação, a vinculação ao edital, bem como algumas regras mais rígidas de controle e de fiscalização dos atos administrativos.

Quero apontar o que, naturalmente que com todo o respeito intelectual e acadêmico, considero serem perigos e confusões dessa interpretação. 

O primeiro perigo é procedimental: o direito administrativo da crise, como logo se percebe, seria rebento não do Poder Legislativo, mas dos tribunais. Trata-se, efetivamente, da criação de um regime de exceção por um poder que, constitucionalmente, não tem prerrogativa para tanto. E nem deve tê-la. 

O direito administrativo da crise, portanto, embora nutra uma saudável preocupação com a substância dos arranjos regulatórios, ignora ou faz pouco caso de uma conquista civilizatória relevante, a saber, a natureza essencialmente procedimental do sistema jurídico e, naturalmente, da criação do direito. 

Preocupado com o conteúdo, ele se esquece do procedimento. No entanto, sem um procedimento próprio para a criação de normas jurídicas, que em nosso sistema não pode prescindir do Poder Legislativo, inexiste direito.

É POSSÍVEL UM DIREITO ADMINISTRATIVO DA CRISE?

É evidente que a jurisprudência exerce papel fundamental na definição do que deve ser o direito em cada caso, inclusive decidindo casos não integralmente regulados pelo sistema jurídico, como se passa quando de colisões entre princípios. Isso acontece especialmente porque, a despeito da ilusão em que muitos embarcam, o sistema jurídico é fatalmente incompleto e dotado de contradições normativas. 

A rigor, o direito vai se construindo e reconstruindo com as práticas dos tribunais, que interpretam, em cada caso, as regras gerais fixadas pelo Poder Legislativo. O direito não se encerra na regra geral, em suma. 

Mas essa circunstância epistemológica inevitável não pode ser confundida com a atribuição de algum poder legislativo ao Judiciário, muito menos na desconsideração de que as regras gerais fincam limites às decisões judiciais. 

Embora naturalmente seja possível que regras legais sejam afastadas por eventual contradição com normas constitucionais, isso deve acontecer circunstancialmente, em cada caso e observadas as condições fáticas e jurídicas de cada um deles. Situação muito diversa é a criação, de modo ad hoc, de novo sistema de regras de direito administrativo pela doutrina e simplesmente aplicado pelo Poder Judiciário.

No entanto, parece ser precisamente essa a ambição de algumas das propostas de um direito administrativo da crise. Trata-se de um equívoco grave e perigoso, a praticamente demandar o Judiciário dos receituários do ativismo judicial.

COMO PROCEDER?

Como mencionei, é evidente que um novo regramento de direito administrativo é necessário para situações de pandemia. Mas tal proposta deve se direcionar ao legislativo, não ao Judiciário. O segundo perigo que reputo relevante é reflexo do que penso ser o grande problema da ciência do direito administrativo da atualidade, a saber: a ausência, em regra, da confirmação autêntica de suas conclusões com alguma teoria dos direitos fundamentais, o que se traduz em uma pobreza analítica de casos jurídicos que envolvam colisões entre direitos fundamentais, tão comuns nesse ramo do direito.

O caso do direito administrativo da crise é, nesse sentido, bastante sintomático: fala-se em um “princípio” da legalidade, para poder relativiza-lo com maior facilidade, quando, em verdade, o texto constitucional evidencia que esse direito fundamental foi positivado como regra: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5o, II, CF). 

Direitos fundamentais, ao contrário do que equivocadamente se tem difundido, nem sempre são previstos como princípios, e o caso da presunção de inocência está aí para prová-lo. 

A distinção entre regra e princípio não é meramente cosmética, antes atendendo a uma finalidade prática relevante: a regra exerce a função de assegurar a estabilidade da ordem jurídica e, nesse sentido, a própria segurança jurídica. 

Quando um direito fundamental é, então, positivado como regra, isso significa que ele não pode ser “ponderado” com outros princípios e, nesse balanceamento, vir a deixar de ser aplicado num caso concreto.

Naturalmente, não estou a afirmar que nenhuma regra legal pode ser excepcionada, especialmente quando em colisão com algum direito fundamental constitucionalmente previsto. 

O ponto é que a argumentação a ser construída, aqui, não deve se basear em uma colisão entre o “princípio” da legalidade e o princípio supostamente colidente.

Não, é o caso de conflito entre a regra e o princípio constitucional colidente, a ser resolvida com o estabelecimento, pelo princípio eventualmente prevalente, de uma cláusula de exceção àquela regra infraconstitucional, a ser semanticamente vinculada à hipótese do caso que justificou a exceção. 

Trata-se, de qualquer forma, de situação excepcional, que exige cuidadoso ônus argumentativo de quem pretende afastar a regra, sobre a qual deve recair presunção de validade.

E essa presunção de validade não é gratuita. Sua razão está precisamente no fato de as regras já serem, por natureza, uma opção legislativa e democrática de restrição de direitos fundamentais – ou de regulamentação deles, como se preferir. 

Convém retirar pré-compreensões equivocadas, aqui: não é apenas o Judiciário que interpreta a Constituição, como ele não tem a prerrogativa exclusiva de realizar juízos de restrição de direitos fundamentais, este o dilema é o resultado de qualquer ponderação de princípios. 

Ao contrário, ele deve, sempre, alguma deferência a essa restrição prévia realizada pelo legislador. E é por isso que aquele que argumenta pelo afastamento de uma regra tem sobre si um ônus argumentativo sobremodo mais forte.

Mais uma vez: a distinção entre regras e princípios não é insistência num purismo classificatório ou semântico. 

Admitir que a legalidade seja tratada como princípio significa repelir a função estabilizadora das regras, tornando-as praticamente inócuas, já que, no final das contas, sua aplicabilidade aos casos concretos estaria condicionada à sua vitória em uma ponderação com os princípios colidentes. 

Sua presunção de validade e, logo, de aplicabilidade é afastada, e os ônus argumentativos se equiparam, tanto para quem defende o “princípio” da legalidade, como para quem defende o princípio colidente.

É difícil falar em segurança jurídica, em separação dos poderes e em força normativa da Constituição num cenário como esse.

Na prática, esse direito administrativo da crise, embora não confesse, parece ver na ponderação uma panaceia para a resolução de qualquer caso jurídico, muito embora ela seja método desenvolvido para casos excepcionais, para os quais o sistema jurídico não ofereça uma resposta. 

A não ser como auto engano teórico e democrático, ela não pode ser utilizada para simplesmente se afastar regras pelas quais o intérprete nutra eventual antipatia ou considere prejudiciais segundo uma retórica consequencialista.

Pode parecer intuitivo defender o afastamento generalizado de regras quando se trata de assegurar um regime mais flexível de contratações públicas ou mesmo da punição de agentes públicos, mas é importante ter em mente que, por coerência, essa mesma lógica argumentativa poderia ser utilizada, por exemplo, para flexibilizar os critérios legais para o uso do poder de polícia pelo Estado. 

O manual do líder autoritário é elaborado com princípios de textura aberta, não com regras que apresentam razões definitivas.

Assim se passou no regime nacional-socialista, na Alemanha, e na ditadura militar brasileira, como bem adverte Marcelo Neves [3]. Por isso, as corriqueiras teses que procuram tirar das regras a sua dignidade normativa, como se elas fossem hierarquicamente inferiores aos princípios, são, além de equivocadas, perniciosas: as regras exercem uma função que os princípios simplesmente não podem exercer.

Naturalmente, não sou contrário à construção de um novo regramento de direito administrativo para um novo tempo, para um novo contexto civilizacional. 

Mas insistir que ele seja construído à revelia do procedimento legislativo e de uma autêntica teoria dos direitos fundamentais significa insistir em uma ciência do direito administrativo surda para tudo o que ela pode aprender com a ciência do direito constitucional. 

Significa, numa palavra, insistir no caminho sem método que as decisões judiciais em matéria de direito administrativo, consciente ou inconscientemente, têm trilhado.

Escrito e Publicado por:

André Portugal. Advogado. Sócio do Klein Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Professor de Teoria da Decisão do FAE Centro Universitário;

Notas:

1 . Artigo disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-licao-de-santo-agostinho.shtml 

2. FILHO, Marçal. Direito Administrativo da Emergência: Um modelo jurídico. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/325042/direito-administrativo-da-emergencia-um-modelo-juridico ; e a versão completa em http://jbox.justen.com.br/s/Ngmno9amBAAAwAB 

3. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: Princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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