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LAVA JATO, CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA

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06 Junho 2017

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É a Lava Jato que precisa se adequar à Constituição, não o contrário

 

Algumas palavras sobre a democracia

A democracia é a forma de governo da reflexão, enuncia o sociólogo Émile Durkheim. Por, idealmente, visar à construção de um ambiente dialógico que dê voz, participação e reconhecimento a todos aqueles que serão afetados por suas normas, trata-se também da única forma de governo efetivamente fundada na autonomia e na liberdade.

Numa palavra: porque somos partícipes e responsáveis pela construção das normas a que estaremos sujeitos e, consequentemente, pela sociedade em que viveremos, podemos nos considerar os artífices de nossa própria história, enquanto comunidade política.

A democracia, como modelo, depende de certas premissas, como a de que o conhecimento humano é falho, limitado, e várias formas de se observar e interpretar um mesmo fato podem, eventualmente, ser consideradas razoáveis, e a de que muito do que se passa na vida em sociedade se trata de uma construção conjunta, fruto do já mencionado diálogo entre as muitas vozes socialmente reconhecidas. Floresce, assim, um ambiente em que discursos e projetos abrem-se a toda sorte de críticas e procuram rebate-las ou, eventualmente, reconhecer os seus próprios equívocos: vige o império da razão, e a única coerção admitida é a do melhor argumento.

Para que este estado de coisas se concretize, no entanto, são necessários alguns pressupostos mais concretos, traduzidos, por vezes, em direitos e deveres: é o caso da liberdade de expressão, bem como do direito de todo cidadão à informação transparente, que se pretenda verdadeira e seja desvinculada de interesses particulares e eventualmente obscuros. A democracia não pode ser o governo da manipulação.

É claro que isso se trata de um ideal, cujo evidente distanciamento de nossa realidade exige reconstruções e reflexões, destinadas a aproximá-los, tanto quanto possível.

De qualquer maneira, embora, especialmente no Brasil, o modelo de democracia representativa, paradoxalmente, mostre-se insuficientemente democrático, sobretudo pela sensível corrupção do sistema político pelo sistema econômico, o que implica numa compreensível ausência de confiança dos cidadãos em seus próprios representantes e na inaceitável exclusão de muitas vozes no processo decisório, é perigoso, ingênuo e errado desconsiderar a relevância do Parlamento como a primeira e mais autêntica fonte de onde devem surgir as normas das quais todos seremos destinatários. A despeito deste notório déficit democrático e da mencionada perversão do sistema político, o Parlamento é a instituição mais plural da República, a abrigar representantes de setores os mais variados, e onde, uma vez se concretizando essa reconstrução democrática, as muitas vozes mudas de hoje poderão ser ouvidas, cada vez mais. O Parlamento deve ser o garantidor da liberdade e da autonomia cidadã.

De modo que demonizá-lo, enquanto instituição, e propor a sua substituição por algum outro Poder, como o Judiciário, pode implicar naquilo que Robert Dahl chamou de guardiania: substitui-se o ideal de um autogoverno, com normas feitas por nós mesmos e com a aceitação da responsabilidade pelos eventuais erros cometidos ao longo deste caminho, por um governo de pretensos sábios, guardiões, a ditarem todos os detalhes do trajeto que seguiremos enquanto nação e a prestarem contas somente a si mesmos. Talvez por medo do fardo da liberdade, que é a responsabilidade, tem sido tão fácil, ao longo da história, a sua ingênua renúncia.

Constituição, Direitos Fundamentais e Processo Penal

O fim do Estado não deve ser outro que não as pessoas. É dizer, o Estado não é senão um instrumento para assegurar que as pessoas sob a sua proteção tenham liberdades e direitos tidos como condições de possibilidade de uma vida digna de ser vivida.

Essa imperiosa premissa iluminista foi institucionalizada e concretizada por meio da criação de direitos dos cidadãos contra o Estado, direitos que, por sua própria natureza, visavam a limitar os recorrentes abusos estatais de que todos, nalgum momento, poderiam ser vítimas. Desenvolviam-se, enfim, as ideias de que (i) o Estado não se cuida de uma entidade absoluta, existente por e para si mesma, e, o que decorre disso, de que (ii) qualquer restrição à liberdades dos cidadãos não poderia prescindir de uma justificação racional. Estabelecia-se, com isso, cenário propício ao desenvolvimento de uma teorização dos direitos fundamentais.

O que se estabelece a partir daí é que, pouco importando quão legítimos sejam os fins eventualmente perseguidos, esses direitos não podem ser violados. Mais especificamente, muito embora todos esses direitos integrem um sistema e, por isso, possam colidir entre si, sendo inevitáveis e legítimas determinadas restrições em casos concretos, é certo que a inevitabilidade de tais restrições não pode servir como um álibi retórico para, sem uma fundamentação constitucional, desconsiderá-los ou aniquilá-los, menos ainda quando, do outro lado da balança, encontram-se não direitos fundamentais, mas interesses sociais, a exemplo do famigerado combate à corrupção e à impunidade.

Os meios, assim, devem importar, e muito, sob o risco da absoluta perversão de um sistema construído sob a ideia de que as pessoas vêm em primeiro lugar.

Não obstante, mesmo nos séculos que sucederam esse marco civilizatório, a experiência histórica mundial fora e tem sido pródiga nos exemplos de abomináveis violações a esses direitos, não raro envernizadas com uma superfície discursiva pretensamente humanista e fundada em fins ou interesses tidos por legítimos.

A rigor, sobretudo por causa da consolidação destes direitos, ao menos enquanto ideais, tem sido cada vez mais constrangedor negá-los explicitamente, de maneira que a maior parte das modernas violações ou negações a eles têm se dado, paradoxalmente, afirmando-os. Foi assim que a Ditadura Militar brasileira, por exemplo, afirmou-se como um resgate da democracia e da liberdade; é assim que bombas são lançadas aos montes, fazendo milhares de vítimas diárias, com a suposta finalidade de defender os direitos humanos. Há incontáveis outros exemplos.

Possivelmente, a ocasião em que se torna mais explícita a contraposição entre indivíduo e o Leviatã seja o processo penal, quando aquele é institucionalmente acusado da prática de algum crime e, portanto, precisa defender-se, com o risco de perder, por certo tempo, a própria liberdade. E, justamente por isso, por tratar de algo tão especialmente relevante – a liberdade individual -, é que a legitimidade dos meios torna-se irrenunciável. Decisões judiciais e outras medidas estatais que venham a restringir esse direito fundamental, portanto, não podem escapar do dever de uma fundamentação criteriosa, racional e constitucional.

Principalmente aqui, não se pode perder de vista que o Estado existe em função das pessoas, e que as liberdades e direitos individuais, no que se incluem as garantias processuais, não se cuidam de subterfúgios utilizados para a impunidade, mas das salvaguardas mesmas de uma sociedade livre, justa e bem ordenada.

Uma vez iniciado o caminho da sobreposição fácil, irracional e irrestrita de direitos fundamentais por interesses pretensamente gerais e genéricos, sobretudo quando em voga as pressões de um discurso único, abrem-se as portas para a barbárie.

Lava Jato, Constituição e Democracia

Poucos negam que a Operação Lava Jato vem alcançando feitos memoráveis e, nessa medida, tem prestado um serviço valioso à nação, sobretudo no que toca ao desvelamento daquilo que todos, em maior ou menor medida, desconfiavam: a aparentemente infindável cadeia de corrupção que une agentes públicos e privados e impele o modus operandi da República não para seus fins constitucionais e legais, mas, muito pelo contrário, para a satisfação de interesses privados e obscuros. Um patrimonialismo torpe, enraizado no Estado brasileiro desde a sua gênese e, talvez, na própria cultura do nosso povo, marcada, segundo Sérgio Buarque de Holanda, pela sobreposição das razões pelas paixões e, nessa linha, pela valorização das relações de amizade ou parentesco em detrimento de um agir por princípios morais racionais e, logo, impessoais. Este seria um lado não republicano do “homem cordial”.

O combate à corrupção é, mais que um interesse social louvável, uma condição de possibilidade para que as muitas promessas constitucionais descumpridas possam se tornar realidade. Por isso, de um modo geral, a Lava Jato deve contar com o apoio de todos.

Mas, não obstante isso, tem parecido progressivamente relevante abordá-la sob outros aspectos, justamente os que constituem o objeto dos dois tópicos anteriores: um aspecto democrático, político, e outro, por assim dizer, associado ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais.

A Lava Jato se trata, originariamente, de uma operação policial, cujos resultados têm levado a inúmeras denúncias, por parte do Ministério Público Federal, e a várias condenações em primeira e segunda instância, pelo Poder Judiciário. Portanto, em tese, os seus respectivos agentes e servidores têm seus papéis limitados, evidentemente, a atos neste processo. São partes e juízes, cabendo-lhes observar todos os deveres inerentes às funções que aí passaram a desempenhar.

A despeito disso, já há algum tempo, vários desses agentes transcenderam consideravelmente os papéis processuais que lhes foram atribuídos, convolando-se, antes, em autênticos atores políticos, com frequentes declarações e entrevistas a mídias as mais diversas e proposições legislativas, e a exercerem a pressão de um discurso único em todos os poderes da República – não raro, valendo-se de seus atos no próprio processo para a promoção de estratégias específicas, prática não consentânea aos deveres de um Estado que trate seus cidadãos como pessoas e titulares de direitos fundamentais.

A Lava Jato, sob esse viés jurídico–político, passou, então, a atuar estrategicamente, com vistas a promover os fins e projetos que julgava importantes, muitos dos quais alheios às barreiras do caso concreto. E exemplos disso são abundantes, como as sucessivas e recentes divulgações de interceptações telefônicas, gravações e delações à imprensa, não raro em caráter parcial e provavelmente intencional; as questionáveis tentativas de pressionar a própria Suprema Corte do país, quando da opção pelo oferecimento de nova denúncia contra José Dirceu, um dos investigados pela operação, no mesmo dia em que seria julgado habeas corpus impetrado em seu favor; e o próprio modus operandi da divulgação das chamadas 10 medidas contra a corrupção, quando se adotou discurso segundo o qual qualquer crítica ao projeto deveria ser vista, invariavelmente, como proveniente de interlocutor conivente com a corrupção ou auto-interessado na causa. Para dizê-lo mais especificamente: inexistiriam interpretações desinteressadas, intelectualmente honestas e autenticamente preocupadas com o país que não fossem integralmente favoráveis ao projeto. Algo semelhante se passou, é necessário lembrar, quando dos debates sobre a possibilidade constitucional de prisão de réus condenados em segunda instância, caso que acabou sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2016 e no debate sobre a Lei de Abuso de Autoridade.

Constituiu-se, em suma, algo semelhante a um novo Poder, composto por membros não eleitos – embora tenham inegável apoio popular –, a oferecer projetos políticos próprios para o país, os quais se apresentam como um discurso único e que se pretende insuscetível a quaisquer críticas, a exercer toda sorte de pressão e acusação contra qualquer outro Poder, instituição ou pessoa que manifeste alguma dúvida quanto à legitimidade de seu conteúdo.

Naturalmente, o aparecimento da Lava Jato como uma importante voz política no processo de reconstrução da sociedade brasileira não é, em si, negativo. O problema, sob essa perspectiva, encontra-se justamente neste cada vez mais explícito tom messiânico e autoritário que tem caracterizado muitos de seus atos mais recentes, os quais, além disso, dão indicativos de se tratar o processo de algo semelhante a uma cruzada cujo resultado fora definido de antemão. Some-se a divulgação deliberada e, por vezes, parcial, de delações premiadas e tem-se que um único relato dos fatos acaba por adquirir o caráter de verdade absoluta, propiciando condenações sumárias, sem qualquer respeito à ampla defesa. Sob um viés democrático, na medida em que são incansavelmente explorados pela mídia, esses vazamentos podem servir como meio de manipulação da opinião pública, sendo, assim, avessos à reflexão que, por natureza, deve caracterizar a democracia.

Todo discurso que se pretenda único é, por definição, intolerante e autoritário, não obstante as eventuais boas intenções de seus porta-vozes.

E, em termos gerais, o efeito dessa pretensão tem sido a demonização generalizada das demais instituições da República, a exemplo do Parlamento, e, por conseguinte, da própria política. Não se pode duvidar, por exemplo que, de modo inconsequente, boa parte da opinião pública optaria por substituir a autonomia para escolher seus próprios representantes e participar da formação da vontade democrática pela concessão de toda decisão política a membros do Poder Judiciário ou mesmo da Operação Lava Jato.

O Parlamento, no entanto, por sua relativa abertura a diversos projetos políticos e concepções de justiça, é o principal espaço institucional do diálogo e da autonomia, muito embora, evidentemente, não deva ser o único. É, por assim dizer, a condição de possibilidade da democracia. Demonizá-lo e substituí-lo pela aceitação passiva de um discurso único e, logo, autoritário, significa, em última análise, abdicar da própria liberdade. Daí é que a operação, a despeito de suas evidentes boas intenções, pode vir a se consolidar também como símbolo do enfraquecimento da política e da democracia no Brasil.

Mas não é só isso.

Além do aspecto formal dos discursos e posturas adotados no âmbito da Operação Lava Jato, é imperioso analisar o seu aspecto material, isto é, o conteúdo mesmo desse discurso, suas premissas e conclusões, sobretudo no que toca à sua adequação à Constituição e ao regime de direitos fundamentais que ela institucionaliza.

Alguns pontos, aqui, chamam a atenção.

De um modo geral, a operação tem procurado refundar as diretrizes do processo penal brasileiro, sustentando-se, para isso, em um argumento específico: a necessidade do combate à impunidade, vista como um interesse ou direito de toda a sociedade, a ser sopesado contra os direitos fundamentais individuais de que são titulares os seus respectivos réus . A partir daí, seus membros têm privilegiado determinados mecanismos de produção de provas, como a colaboração ou delação premiada e, como se viu recentemente, as ações controladas. Têm defendido, além disso, uma explícita relativização de direitos fundamentais, como a presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), e das nulidades processuais, chegando-se mesmo a admitir, nalguns casos, a utilização de provas ilícitas ou inconstitucionais. Aí vão algumas notas sobre este segundo ponto.

Trata-se, logo se percebe, de um discurso pragmatista, segundo o qual a eficiência da persecução criminal se justificaria por si mesma. Seria, mais que isso, a própria viga mestra do processo penal a sustentar todos as demais normas que o estruturam. Por isso mesmo, direitos fundamentais individuais, especialmente aqueles relacionados ao processo, não lhe seriam senão obstáculos. Sua restrição, aí, passa a exigir um ônus argumentativo muito menor. Mas se trata, também, de um discurso comunitarista ou coletivista, cujas premissas consistem em certa prevalência prima facie de interesses ou direitos gerais sobre direitos individuais.

Certamente, os interesses sociais ou gerais não devem ser desconsiderados, nem mesmo em se tratando do processo penal, quando em causa a liberdade. Mas eles não podem se sobrepor a direitos individuais, ao menos não de maneira irrestrita e despida de um ônus argumentativo rigoroso. Os direitos individuais têm um titular concreto, a sofrer na pele as dores de uma eventual arbitrariedade estatal; os interesses sociais, por outro lado, embora tenham titulares, os têm de maneira genérica e vaga, sendo facilmente utilizáveis como artifício retórico para a sustentação de qualquer restrição a direito fundamental. Por isso, é preciso rigor argumentativo ímpar quando se busca restringir direitos fundamentais com fulcro em interesses sociais, o que, definitivamente, não tem se dado no âmbito da Operação Lava Jato.

Mais concretamente, os direitos fundamentais, do que deriva o instituto das nulidades processuais, não devem ser vistos como se fossem entraves à persecução criminal, mas como uma garantia de que todo cidadão não será vítima de arbitrariedades estatais. Atos processuais ou provas produzidas de modo contrário à Constituição ou à lei, portanto, não devem ser admitidos, sob pena do reaparecimento de resquícios de um tempo não tão distante.

Relembremos: o Estado não se fundamenta por si próprio. Sua legitimidade advém dos cidadãos, enquanto titulares de direitos. Do mesmo modo, é a Lava Jato que precisa se adequar à Constituição, não o contrário.

Texto originalmente publicado no periódico jurídico JOTA.

Disponível em: https://jota.info/artigos/lava-jato-constituicao-e-democracia-04062017

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